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Não é sem uma leve ponta de prazer que introduzo ao leitor desta prestigiosa revista uma crónica das artes, de critica, de civilização, e ainda por cima  precisamente nessa disciplina fulcral e onde ultimamente impera a confusão, o livre arbítrio e a franca corrupção. Sim,  já terão decerto compreendido qual: a Critica de Arte. Depois de muito cogitar sobre este tenebroso assunto ( eu próprio sou um pouco artista)  pareceu-me pertinente convocar os melhores críticos de arte á escala planetária, que têm contudo passado despercebidos nas geladarias da Baixa:

Isaac e Óscar Abraão. Os irmãos Abraão, tendo um entendimento e um super-avit de informação geneticamente idêntico, extremamente atentos ás mais recentes flutuações da filosofia e da arte, partilham no entanto um vocabulário estranhamente antiquado, dos finais do séc. XX, se não anterior. Divergem, contudo, completamente, tanto na abordagem das grandes questões das artes contemporâneas, como de tudo o resto. E isto como o lobo do cordeiro, o preto do branco, o pintor de cavalete do vídeo-artist, o coro de Santo Amaro de Oeiras dos Metallica.

Se é verdade que estes dois criticos se escondem sob o manto diáfano da fantasia heteronímica, não é menos verdade que muitas manifestações no campo das artes são um monte nem por isso diáfano de outra coisa que não fantasia e que é coberto por um manto tão diáfano que só aos verdadeiros conhecedores  é visível. Em suma, o rei vai nu. O rei vai nu?

Para Óscar Abraão o rei nunca vai assim tão nu e em contraponto para Isaac Abraão a nudez é patente através das sete saias de chumbo da mais vestida das rainhas.

Foi por isso que lhes propus que abordassem  os  temas sobre a forma de dialogo, até porque nunca se sabe qual deles tem razão e assim, pelo menos a verdade aparecerá, talvez, numa destas posições.

A título de exemplo acompanhei-os numa recente exposição num amplo espaço camarário. Essa exposição era fruto de cooperações esmeradas e seriíssimas sobre as quais não me vou alongar, onde os artistas X… e Y…tinham composto uma instalação, impossível sem a produção executiva do comissário N… num percurso á volta de diversos trabalhos em várias “disciplinas” que iam desde o suporte fílmico até a objectos tridimensionais. Observava as peças calmamente quando atrás de mim começo a ouvir um burburinho. Não pude deixar de reconhecer a voz de  Óscar, primeiro, e a de Isaac, depois…

—Isto é Arte, não por ser arte, mas exactamente porque não é arte!

  • Isto não é arte. Isto é um exercício de escola. Estão a jogar á arte.
  • Repara, Isaac, podes traduzir o estado de espírito desta instalação quase eclesiástica nas cores de um Murillo ou de um Zurbaran. Repara nos castanhos dos filmes de 16mm, no negro da sala, no branco ósseo da natureza morta… E as peças entram num dialogo auto referencial onde…onde…
  • Onde não há nada. É um jogo. A morte, os rituais, a vida do artista que experimenta uma realidade para depois fazer dela uma obra de arte é um desporto qualquer mas não lhe chamem arte. É mais como aquelas senhoras que têm experiencias com almas do outro mundo através de pratos que se deslocam pela graça de fantasmas…
  • Não concordo, e alem do mais tens que concordar que é um trabalho perfeito do ponto de vista formal, mesmo irrepreensível. Sóbrio, sério e negro. Do mais contemporâneo que há no sentido de uma interdisciplinaridade não só em termos da utilização de diversas disciplinas plásticas mas também como do seu enquadramento teórico e vivencial. Lembra-te que eles filmam a realidade, por onde andaram, o que experimentaram… é uma reflexão poética, um esqueleto lavado pelo mar…
  • Se tu não te calas com esses disparates sinto-me na obrigação de te atirar com um balde de água gelada no teu poético crâneo. Basicamente estes gajos foram passear num sítio a que chamaremos “exótico”, filmaram alguns rituais “exóticos”, filmaram-se também a si próprios como Hamlet falando com o bobo, utilizaram algumas metáforas poéticas e encenaram técnicas já vistas para compor esta espécie de igreja soturna que aqui vês. É engraçado. A morte, a igreja, o negro, todos os símbolos da seriedade e depois o “pathos” do filme de 16 mudo, cheio de patine, em apontamento de antiquário. Mais uma coisa morta-viva, mas com um charme tão na moda…
  • Mas é exactamente isso o que se pretende! Os tristes trópicos ou a triste vida em geral, os vestígios… que seremos nó no futuro debaixo das eternas forças naturais senão vestígios?