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Na Lisboa de então, a profissão de mestre pintor era tida em alguma consideração. Não sendo uma posição nobre, era por vezes a alguns mestres dada a oportunidade de participarem em banquetes com o próprio rei, no caso dos seus trabalhos caírem nas boas graças de sua mãe. A raínha Isalzisa, filha de um comerciante de salsichas de Lamego, tinha um fraco pela pintura de cavalete e era ela própria uma péssima aguarelista. Obviamente que ninguém criticava os dotes pictóricos da nobre senhora, pois quando ficava contrariada, oferecia às pessoas a oportunidade de uma visita às masmorras, onde se alinhavam de uma forma limpa e arrumada as últimas invenções no domínio das máquinas de tortura, que a Santa Inquisição vinha inovando ano após ano.

O jovem adolescente João das Lampas era assistente do mestre pintor Domingo Domingues, veterano de trípticos polípticos e policromáticos painéis onde figurava a vida dos Santos, assim como cenas bíblicas do Antigo Testamento, onde por vezes se misturavam algumas imagens pagãs – pelo menos era o que dizia o Cardeal Segisfredo, sempre no afã de encontrar uma vítima com a qual pudesse comprovar a qualidade das infernais maquinarias da Inquisição.

Os pais de João viviam no meio de uma floresta, na região do Buceiral das Lampas (donde o nome João das Lampas). Uma região florestal, constituída por um loudaçal cravejado de arvores tristes e sem folhas. Tinham vendido o pequeno João ao mestre Domingo Domingues tinha ele três anos por três patacas de bronze, que prontamente gastaram em vinho de má qualidade. No entanto, o jovem João singrou na oficina do mestre, aprendendo de tudo, desde misturar os pigmentos e dos óleos até à preparação das telas, à arte de dourar madeiras, esculpir altares, até se tornar indispensável na oficina e o mais certo herdeiro desta.

Todos os meses, João enviava para as Lampas dois dobrões de ouro, coisa que fazia com que os seus pais vivessem agora bem, estivessem quase sempre alcoolizados, sendo que o pai frequentava as possíveis prostitutas nos recôndidos ermos e lugarejos da região, e a mãe frequentava bruxos e bruxas, endo arranjado também uma criada de servir, na qual batia constantemente com uma vara de marmelo.

Certo dia, os pais visitaram João em Lisboa, foram à sua casa e bateram à porta: “Toc toc toc”. “Quem é?”, disse João. “Somos os teus queridos pais, que não te vemos à tanto tempo, e tanto gostamos de ti”. O João, admirado, abriu a porta, e apesar de os ver muito mais gordos e com muito menos dentes, conseguiu (porque era bom fisionomista), reconhecer neles algumas afinidades formais com os seus pais, dos quais se tinha despedido com 3 anos de idade.

Mal entraram na sua casa, os pais começaram a comer tudo o que havia para comer, a experimentar todas as roupas de João, pois que ele tinha pelicas de raposa ártica, e outro tipo de vestimentas muito à moda da época, e que raramente se viam em São João das Lampas.

João, muito contente de ter outra vez os seus queridos pais, mandou assar uma vitela inteira e mandou vir músicos e dançarinos para os agradar. O pai não perdia a ocasião para beliscar as bailarinas e a mãe nao perdia a ocasião para vomitar sobre os ricos tapetes persas que ornamentavam o soalho.

João arranjou-lhe um quarto para passarem a noite, com uma cama de dossel, em frente da qual um altar todo em talha d’ouro abrigava uma imagem da Nossa Senhora polícroma, ostentando um vestido pintado de lápiz-lazuli, cujos olhos eram feitos de pedras e esmeraldas. O pai disse prontamente à sua esposa: “Devíamos levar isto para casa. Era o mínimo! Afinal, sem nós, ele nem sequer existiria.”. E a mãe dizia: “Depois de tudo aquilo que fizémos por ele, e vivendo como ele vive, é um insulto não nos pôr casa em Lisboa”. “Sim, o malandro! Despreza os próprios pais e as suas origens modestas, preferindo o vão luxo da cidade e as más companhias…”. A mulher interrompeu-o: “Olha que nisso das más companhias tem a quem sair; não te podes considerar como um modelo de virtude, putanheiro de merda!”. “Eu, putanheiro? E tu, minha vaca? O que andas a fazer com essas bruxas das tuas amigas? A dançar o Sabath com cabras e bodes, a voar pelos ares em vassouras… Se a Santa Inquisição soubesse metade do que eu sei, estarias neste momento a apascentar as chamas das fogueiras”. “Bom, tabém, mas leva lá a Santa no saco, e voltamos para São João das Lampas”. No outro dia de manhã, o pai quis ir ao quarto de banho, e a mãe também, mas verificaram que ela estava ocupada, e ouviam um barulhos próprios, que uma pessoa faz quando está a obrar. “Oh João?” – disse a mãe, “Estás a obrar?”. “Sim, mãe!”, disse o João “é só um bocadinho!”. “Ah, está bem. Ficamos aqui à espera”. Mal o João saiu, os pais entraram. Ficaram muito surpreendidos e deliciados com a claridade, a vastidão e a limpeza da casa de banho. Olharam para um grande penico, cujas bordas eram cobertas de almofadas de couro, e a mãe disse: “Sim senhor! O meu filho é um verdadeiro príncipe. É engraçado que não cheira a nada!”. Aproximou-se do principesco penico e soltou uma exclamação de espanto ao ver o objecto que nele estava depositado:

“Oh Aníbal, é um cagalhão de ouro”

“Hã?”

“Um cagalhão de ouro, Aníbal! Ah, e é tão grande… Achas que ele repara se nós levarmos?”

“Claro que não!”

“Não será isto um truque? Não será uma maneira de nos dizer que estamos a ser cobiçosos?”

“Vamos fazer o seguinte, mulher… Vamos ficar aqui a olhar o que é que fazem com o penico. Ficamos aqui atrás das cortinas do duche e vamos ver tudo o que se passa!”

Entrou uma servente com um ar perfeitamente natural, pegou no penico e atirou o cagalhão pela janela. Os pais saíram de casa, foram até ao quintal, e qual não foi o seu espanto quando verificaram que todo o quintal estava coberto dos mais variados formatos de poias do precioso metal, abandonadas como se de estrume se tratasse. Os pais, imediatamente, mandaram vir uma carroça puxada por quatro bois, e depois de meter os preciosos objectos em sacas, carregaram o carro e meteram-se a caminho das Lampas, sem sequer se despedirem do rapaz. Chegando a meio do caminho, no entanto, encontraram um velhinho em cima de uma ponte. O velhinho pedia esmola da seguinte forma: “Dêm só um tostãozinho, dêm só um tostãozinho a este pobre velhinho para que ele possa comer uma sopinha”. O pai, irado, respondeu: “Chega-te para lá, não tens vergonha? Com a tua idade, e a pedir?” e a mãe: “Já não há moralidade, Aníbal. Estes pobres são o cancro do nosso país.” Mas a carroça estava tão pesada, tão pesada, que partiu uma roda. Quando outra carroça apareceu atrás, a ponte partiu-se, e os pai só se salvaram porque se conseguiram segurar a parte da arcada que não tinha cedido à derrocada. Mal se conseguiram salvar, tomaram o caminho da parte de baixo da ponte, para ver se podiam salvar algum do seu precioso conteúdo, mas a torrente do rio, copiosa, tinha arrastado carroça e tudo o que lá estava dentro em direcção ao oceano, e nas margem tinha deixado apenas um cagalhão de ouro, que era o cagalhão que João tinha obrado naquela manhã. A mãe disse assim: “Isto sempre dá para viver desafogadamente durante uns anos, Aníbal”. “Não sei, Cunegasta. Eu gostaria de construir um castelo com dez torres, mais alto do que o de Sortelha, com as ameias repletas de pedras preciosas, para mostrar a toda a gente que somos o casal mais rico do mundo, e as pessoas mais inteligentes que pisam o firmamento terreno.” “O que é que havemos de fazer, Aníbal?” “Tenho um plano! Vamos escrever ao João uma carta a dizer o quanto gostaríamos que ele nos viesse visitar e que sabemos o quanto ele gostaria de rever o seu torrão-natal.

E voltaram a casa e pediram a um rapaz que sabia ler e escrever que escrevesse a carta para o filho.

João recebeu a carta na altura em que se preparava para acabar o retábulo mor da catedral de Lisboa e escreveu a dizer que naquela altura não podia porque era o trabalho mais importante que lhe tinham atribuído e tinha uma obrigação para com o seu mestre. Apareceu-lhe então um velhinho, O mesmo que os pais tinham encontrado na ponte, e que lhe pediu esmola:

Meu bom senhor, peço-lhe só uma esmolinha para que um pobre velho que a morte já corteja  possa comer uma sopinha…

O bom João tirou da sua bolsa tudo o que tinha, dez dobrões de ouro, que davam para comprar dez cavalos, e ofereceu-o ao velho.

  • obrigado , meu bom senhor, bendito seja entre os homens e os anjos, boas festas e um novo ano muito próspero.

 

O resto da história já se sabe: Os pais estriparam João Á procura de ouro mas nada encontraram. É assim que este país trata os artistas desde o Sec. XVI.